Somos de Deus
Mais um dia chegava ao fim... Ao menos assim ela supunha, já que os sons da cidade iam adormecendo, enquanto uma brisa fria ganhava terreno por entre as casas.
Difícil contar a passagem do tempo. Era cega de nascença, nada conhecia além de longa noite.
Vergada sob o peso das dores do desconsolo, encolhera-se num canto, as pernas mirradas dobradas sobre o tronco envolto em trapos.
A escrava Tínea - o pequeno verme - estava ali, naquele desvão do muro da cidade, junto à porta da fonte menor há vários dias.
Quantos? Talvez quatro, talvez cinco, não sabia ao certo.
Sedenta e faminta, esperava o retorno de seu senhor Máratus Flavinius, o único que lhe servia de luz na escuridão de sua vida triste e difícil.
A jovenzinha, que mal completara 12 anos, vítima de terrível doença, só escapara da morte porque sabia cantar e seu canto sustentava os vícios de seu senhor.
Ele ainda não voltara daquela noite em que, embriagado, demandara a taverna em busca de mais vinho... Um pensamento a assustava: Máratus estava morto.
Só morto deixaria de explorá-la.
Criando forças e coragem ergueu-se com dificuldade, apoiando-se ao cajado tosco, experimentando uma estranha sensação de liberdade.
Tateando, rente ao muro, guiando-se pelos sons da noite, foi indo, tropeçando, caindo, erguendo-se, esbarrando...
Na última queda, não muito longe de onde estava, extenuada mas feliz, adormeceu, fazendo planos de continuar seguindo sempre em frente.
Estava livre. Não cantaria nunca mais no mercado público, forçada pelo seu senhor.
Muitas horas depois, foi desperta pelo trançar de vozes no ar que lhe dizia de uma multidão ao seu redor.
Vozes jovens, vozes velhas, vozes roucas e graves, vozes altas e estridentes, vozes lamentosas e sarcásticas, vozes em grego, meda, parta...
Vozes e mais vozes. Uma daquelas vozes, repentinamente, ergueu-a no ar.
Era Janus, um velho escravo liberto, que muitas vezes a ouvira cantar. Ele tomou-a como fardo leve, levando-a em direção - dizia ele - de um concerto de inigualável beleza.
Janus foi tão carinhoso, e as vozes na multidão tão vibrantes de confiança, que Tínea deixou-se ir, sem murmurar.
Repentinamente, todos se calaram... E o silêncio foi tão eloqüente que se podia ouvir a voz da natureza. Então, por entre o farfalhar das ramas, uma voz em arameu foi ganhando corpo, sonoramente...
Bem-aventurados... Bem-aventurados... Dizia a voz doce ao sopro da brisa...
Tínea pensava... Pensava... Nunca havia ouvido nada assim...
Bem-aventurados... Bem-aventurados... Sussurrava a voz aos seus ouvidos... Bem-aventurados todos os mansos, os pacíficos, os perseguidos, os tristes e os abandonados...
Muitos O chamavam... Rabi... Rabi...
Tínea pensava... Pensava... Aquela voz era tão doce e tão suave, como os primeiros raios de sol das manhãs...
Aos poucos, ela foi compreendendo que a voz falava também para ela. O que tinha feito de bom até então?
Era muito jovem, cega, deformada, vivia na escravidão de um corpo doente da ganância de quem a subjugava. Acomodara-se a essas situações e se deixara levar.
Mas agora era livre, até para cantar novos cantos, enriquecidos com aqueles ensinos do momento.
Sim, ela queria cantar aquelas palavras de luz... E o faria.
Tínea sorriu, abraçando-se ao velhinho que, como ela, também sorria e chorava. Quem os visse assim, emocionados, não entenderia.
Mas Jesus entendia. E do alto do monte Ele também sorria... * * *
Pouco a pouco, o trabalho e a dor, a enfermidade e a morte, compelem-nos a reconsiderar caminhos percorridos, impelindo-nos a mente para zonas mais altas.
Não desprezes, pois, esses admiráveis companheiros da jornada humana, porquanto, quase sempre, em companhia deles é que chegamos a compreender que somos de Deus.
Redação do Momento Espírita.