Livraria 18 de Abril

Cadastre-se gratuitamente | Entrar

Recado de um deficiente visual

   

Eu perdi um pouco de minha visão aos quatro anos. Bastante visão aos dezesseis e praticamente tudo do pouco que me restava uns três anos depois.

Vou ser muito franco e sincero. Tive momentos difíceis na hora de estudar, na hora de querer namorar, na hora de querer dançar em uma festa.

Não é fácil se adaptar ao mundo quando não se enxerga, mas é importante entender que poucas coisas realmente valiosas são fáceis.

Rapidamente, percebi que tinha só duas opções. Eu podia ficar fechado em casa, chorando, porque era uma vítima, ou podia sair e viver a vida.

Foi fácil entender isso intelectualmente. Emocionalmente, demorei um pouco para aceitar esta simples lógica.

Ficando em casa, eu estaria garantindo que nada do que eu queria jamais seria possível.

Eu queria trabalhar, ter responsabilidade, ser produtivo, ser amado, casar, ser independente. Nada disso me seria garantido se eu não me arriscasse e não fosse à luta.

Mas, se eu ficasse me sentindo uma vítima, era certo que nunca teria nada do que queria. A decisão era fácil, embora a luta não fosse.

Acredito que algo que sempre incomoda quando se está enfrentando um desafio, como a cegueira, é que acreditamos que tudo isso é injusto. Por que eu? Por que eu estou ficando cego?

Com certeza, outras pessoas se perguntam outras coisas como: por que eu tenho câncer? Por que não tenho dinheiro? Por que não sou o homem mais bonito ou popular?

O interessante, nisso tudo, é que sempre achamos que o nosso problema é o mais sério. Quando um jovem faz o maior drama, porque não tem a roupa da última moda ou um carro legal, temos vontade de rir.

Com certeza, não rimos de alguém mais maduro que está com uma doença séria. Mas pensamos, silenciosamente, pelo menos ele viveu uma vida feliz. Ou, pelo menos ele enxergou a vida inteira e viu coisas lindas. E eu?

O certo é que não damos valor a nada do que temos. Então, sempre parece que não temos nada. Só damos valor a coisas que perdemos, que antes nunca demos atenção.

Quando estava fazendo mestrado em Washington, triste por algum motivo, nem sei se era porque, como cego, estava tendo dificuldades ou se meu computador estava com problemas, escutei, através do rádio, as notícias de um professor universitário na Califórnia que era tetraplégico.

Como não podia usar seus braços e pernas, ele precisava pegar um lápis com sua boca e escrever no seu computador, apertando uma tecla de cada vez.

Imagine: eu me sentindo a maior vítima. No entanto, eu podia andar por todo o campus, sem ajuda de ninguém, podia escrever mais rápido à máquina do que qualquer pessoa na minha sala.

Aquele professor me ajudou a valorizar muitas coisas que eu não estava dando importância. Perguntei-me: o que é justo? O que é injusto?

É justo eu ter pernas quando não as utilizo para ganhar medalhas nas olimpíadas? Ou não as uso para ajudar o próximo e nem sequer as valorizo?

É justo eu ter um cérebro e não utiliza-lo ao máximo? É justo eu ter braços fortes e não usa-los para abraçar, demonstrar meu amor a quem, todos os dias, me dá tanto?

É justo eu ter uma vida e não me lembrar de agradecer aos meus pais por me terem permitido nascer?

Afinal, sabe-se de tantos que são mortos enquanto ainda são embriões ou fetos.

É justo eu ter uma esposa, um curso universitário, um coração que pulsa, rins que funcionam, pulmões fortes, mãos rijas, e não me recordar de dizer ao meu Criador: obrigado, Deus, por me teres criado?

***

A carta que acabamos de ler é de um jovem brasileiro, que trabalha em nova Iorque há quatro anos.

Sua filosofia pessoal, com certeza, não alentará somente aqueles que estão enfrentando a cegueira física, mas também a todos aqueles de nós, portadores da cegueira espiritual, que não nos permite enxergar as bênçãos que recebemos diariamente.

Pensemos nisso e mudemos o foco das nossas vidas de lutas, dissabores e dificuldades para vidas de oportunidades, testes e aprendizado.

Equipe de Redação do Momento Espírita, a partir de carta de Fernando Botelho, endereçada a um jovem cego de nome Juliano, residente em Curitiba.